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sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Malefícios do tabaco

Quando referi que o ía começar a ler, nem sonhava que tipo de livro ía encontrar pela frente. Confesso que quando o recebi pelo correio, olhei para ele com os mesmos olhos desconfiados com que sempre olhei os meus livros escolares de biologia e saúde: de esguelha.
Mas vindo o livro de onde veio, empreendi-me a lê-lo. E não estou de todo arrependida. Até o aconselho. Até já o acabei...
Transcrevo um "caderno" em particular que na cama me fez rir a sério, em horas menos próprias para a leitura.
Toda a escrita tem uma narração muito humana. Afinal, o Médico é também ele um Homem.
Espero que gostem e que vos incentive a lê-lo.
"Após a performance no teatro operatório, seguia-se a parada, que é como quem diz, a «visita» aos doentes. A minha enfermaria era de mulheres. Apendicites, colecistes, peritonites, enfim, doenças abdominais, em que o cirurgião deixava a marca, em barrigas diversas, novas e velhas, gordas e magras. A sua lavoura. Houve um médico americano, ilibado pelo Alzheimer, que num par de doentes a quem operou, deixou gravadas a navalha, na barriga da doente, as suas iniciais, como apaixonado na casca de uma árvore.
O processo judicial foi de milhões, mas não pude deixar de sorrir ao reconhecer que tinha cumprido, graças à sua loucura, o desejo secreto dos meus colegas operadores. Mas voltemos à visita. Como espectáculo que se preze, terminava com fogo-de-artifício. O cirurgião era fumador, e a observação dos doentes passava-se de cigarro na boca, destapando compressas, pintando «Betadine», aspergindo lixívia, que tem, na boca dos médicos, e na alquimia, o nome sério de hipoclorito de sódio. E havia, é claro, o éter. Líquido vaporoso, inebriante, amigo do fogo. Acabado o cigarro, era a beata lançada, displicente, para o balde de pensos, onde se ía encontrar em esfusiante relação bombástica com o éter. Labaredas multicolores, estrondo de foguetes, e acorriam médicos, cirurgiões, enfermeiras e doentes, a virarem, de pronto, o balde do avesso, terminando o fogo-fátuo que todas as semanas abrilhantava a visita.
(...)
Trabalhava no laboratório de reprodução humana da Universidade de Columbia, e tinha uma relação previligiada com estes primatas, para quem era uma espécie de cartógrafo, a desenhar-lhes o mapa do cérebro, mais propriamente daquela parte do cérebro que faz unir macacos a macacas, em laços amorosos ainda que desprovidos de versos ou dias de S. Valentim. (...)
A parte triste é que de vez em quando um dos animais tinha de ser «sacrificado». A verdade é que era necessário recolher da haste que une o cérebro a uma minúscula glândula, chefe de todas as glândulas, os sucos segregados, que determinam ritmos de ovários, folículos, ovulações. O caminho para o tesouro químico estava tapado pelo olho. Era preciso, por isso, colocar o bicho deitado de barriga para baixo, extrair-lhe o globo ocular, alargar o orifício de entrada para o cérebro, até se dar, de caras, com a dita haste. Um dia, a operação teve de ser interrompida. O cirurgião chamado de urgência para atender um humano deixou-me a mim, solitário, na companhia da símia adormecida, com ferro de inox saindo do olho. Cansei de fazer de baby-sitter, e decidi carregar na seringa e no anestésico, o tempo suficiente de uma cigarrada. Quando voltei, deparei-me com um espectáculo macabro.
A macaca despertara, e, desobediente, saltara da mesa operatória e pulava entre armários, macas e microscópios, com o afastador cirúrgico emergindo da órbita. A partir desse momento, todos os primatas são iguais. Lancei-me com fúria num corpo a corpo diferente, lembrando as lições de Kobaiashi e o meu cinturão de judoca, até ter apreendido, com uma chave nipónica, no chão do bloco operatório a minha rival. Foi assim que o cirurgião nos veio encontrar. Homem e macaca abraçados. Perna em cima, membro em baixo, Tarzan científico, segurando uma chita que guinchava. Malefícios do tabaco."

trecho de, Sinto Muito - Nuno Lobo Antunes
Imagem retirada da internet

2 comentários:

  1. Parece-me um excelente livro!
    Fiquei com vontade de ler algo com um qualquer propósito, neste momento, que não seja profissional. Um principio, meio e fim... :)

    beijinho

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  2. Sim, é, de facto é um bom livro.
    Não contes com princípio, meio e fim, conta sim com algo melhor ainda: pés e cabeça!
    Vais gostar, estou certa.
    Bj

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